31 de janeiro de 2007

 

Usar as propinas

Ainda estou para completar a série de apontamentos sobre o relatório da OCDE, falta o financiamento, ainda esta semana, mas esta nota vem a propósito.

As propinas estão limitadas constitucionalmente, só podem ser aumentadas em função da inflação. Parece-me haver aqui um erro básico, com reflexos práticos. O que está em causa é uma propina única e integral, anual, que cobre as disciplinas em que o aluno está inscrito, poucas como se deve ou muitas, por cabulice. A meu ver, é errado, o que devia haver era propinas individualizadas por disciplinas, o que não me parece ilegal. Consequências? Por exemplo, à primeira vez, a propina em "termos constitucionais". Mas, à primeira repetência em cada disciplina (unidade curricular), agravamento de 100%, à segunda de 300%.

E à terceira? A meu ver, a prescrição definitiva. Haja coragem!

O mesmo para taxas de inscrição para exames. Segunda época, de repetição, a pesar, a dobrar ou a triplicar. E porque não a penalização pecuniária forte, nas propinas, nos processos disciplinares?

 
29 de janeiro de 2007

 

Doutoramentos à antiga?

Muitas vezes tenho visto discutir-se, e bem, o anacronismo das "teses de tijolo" em letras e direito, a prolongar os doutoramentos por anos e anos. Ainda há uns anos, segui de perto os intermináveis dez anos de trabalho de doutoramento em História de um amigo. É curioso é que, depois, fazem às vezes a agregação em dois ou três anos, menos do que é habitual nas ciências e tecnologias.

No entanto, dou sempre por mim em que as coisas não são tão lineares como parecem.

Nos obituários de A. H. Oliveira Marques, reparo que concluiu a licenciatura em 1956 e o doutoramento em 1960. E não me digam que era um protegido do sistema.

 
26 de janeiro de 2007

 

A entrevista de António Rendas (II)

Ao retardador, como gosto, porque a boa reflexão não é muito coisa de blogues sobre o momento, vou comentar a entrevista recente do novo reitor da Universidade Nova de Lisboa, António Rendas (Público, 19.1.2007).

Antes do mais, uma nota optimista. Se não me engano, os últimos reitores a serem eleitos foram os da UE, da UMinho, da UL, da UP e da UNL. Todos eles marcam diferença, e já vai mais de um terço do CRUP. Os tempos estão a mudar?

Sobre a entrevista, começo pela governação. A filosofia é boa, a formulação prática deixa-me com gosto a pouco. A valorização de um conselho consultivo é o mínimo dos mínimos. Mais do que isso é permitir os externos no senado. A meu ver, nenhuma das coisas adianta muito. Ou os externos são pessoas de alta qualidade, empenhadas, forçosamente desejosas de ver resultados do seu esforço, e então têm de estar num órgão de decisão política efectiva (e de "fund raising", cada vez mais importante!). Ou são ilustres semi-decrépitos, com quem o reitor ficará contente com umas conversas inteligentes num órgão consultivo ou com uma errática intervenção vinda do fundo da sala do senado. A terminar, pergunto-me, com total incapacidade de antecipação: como é que Rendas quer transformar um conselho consultivo num conselho de curadores?

Dou o benefício da dúvida, por conhecer bem a UNL e também Rendas. Talvez esrta sua moderação de proposta seja apenas um cuidado táctico. Ainda há bem poucos anos, a revisão dos estatutos da UNL ficou-se por pequenas alterações sem grande significado e, mesmo assim, foi difícil.

Outro aspecto muito importante da entrevista é o da aposta na pós-graduação e, muito especialmente, nos doutoramentos. Das três universidades públicas de Lisboa, a UNL é a menos massificada e a que tem, embora sem enorme diferença, um rácio maior de professores qualificados para estudantes. Bom par de ases. No entanto, duvido do impacto financeiro de uma aposta nos doutoramentos. Os ridículos "bench fees" da FCT? Ou propinas? Isto sim, mas tem de ser em verdadeiros programas de 3º ciclo, com impacto científico e profissional/empresarial.

Finalmente, uma pequena questão caseira, mas cuja importância conheço, na UNL, a da localização da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Não sei qual era a posição do anterior reitor, Leopoldo Guimarães, mas discuti muito isso no reitorado precedente, pré-Guimarães, de um reitor obstinado, contra todo o bom senso e o conselho da secção permanente do senado,reitor esse que só via a FCSH na Caparica. Rendas propõe a sua instalação no campus de Campolide. Presumo que haja lugar físico, num jogo complicado de permutas de terrenos municipais de que já não me lembro bem. Parece-me uma solução muito boa, reunindo tudo o que a UNL tem de ciências humanas e sociais, economia e gestão, direito, geografia, agora as humanidades.

António Rendas, meu caro amigo, os melhores votos de sucesso. Já agora, que a FCMédicas no Hospital de Todos os Santos também ainda seja no seu reitorado.

 
24 de janeiro de 2007

 

Erasmus, o melhor programa europeu (II)

A completar o meu apontamento anterior, duas notas breves, avulsas, mas que julgo merecerem consideração.

1. Conversei sobre o Erasmus com os meus alunos da minha universidade privada. Muitos ficaram entusiasmados, mas a objecção foi geral. "Professor, com as propinas que pagamos, julga que os nossos pais ainda nos podem pagar isso?". Insisto no que já muitas vezes tenho escrito. Não pensem nos estudantes das privadas como meninos-família. Vão às cantinas e vejam o que eles comem (com excepção de umas, muito poucas, candidatas a tias de Cascais, que nunca me vão às aulas e que andam a namorar pelo bar com uma meia dúzia de meninos de carro caro, repetentes crónicos, que nunca deviam poder obter um diploma de licenciatura).

Merece ainda nota marginal lembrar que estes meus alunos, de ciências farmacêuticas, são bons alunos, com nota mínima de 14, que não conseguiram ir para a pública devido ao absurdo limite de entrada. Ainda ninguém me convenceu da correcção desses "numeri clausus", que me parecem ter muito de corporativo. O que é verdade é que, sempre que o ministério aperta as faculdades, por exemplo de medicina, há sempre aumento das vagas, sem grandes protestos.

2. Muitos sistemas europeus de classificação se baseiam numa escala de 4 ou 5 níveis de aprovação, como aliás é sugerido no sistema ECTS. Segundo sei, a transposição para a escala portuguesa obsoleta, de 0 a 20, faz-se em geral pelo mínimo da equivalência aritmética. Isto significa que um aluno possa ter sido aprovado numa disciplina com, por exemplo, A = 95%, o que daria logicamente 19, mas chega a Portugal e tem 16. Uma solução possível é que os alunos peçam aos seus professores estrangeiros que declarem qual foi a percentagem em que se basearam para o seu A. Não sei se vai servir para alguma coisa. Também é importante esclarecer que boa parte destes jovens se está "nas tintas" para as notas, no sentido de exibição de vaidades, mas o que têm é um grande sentido da justiça.

Nota final - Daqui a dias está cá o meu erásmico. Preparem-se para alguns apontamentos a quatro mãos, com contributo essencial de quem sabe por experiência feita. É a única maneira de se escrever acertadamente.

 
22 de janeiro de 2007

 

Erasmus, o melhor programa europeu

Hoje vai uma nota pessoal, coisa deselegante mas creio que compreensível, neste caso. Dentro de dias, a encher-me a casa, regressa de Estocolmo o meu filho, estudante de engenharia informática, que lá estudou um semestre, ao abrigo do Erasmus. Há muito tempo que digo que o Erasmus é das melhores iniciativas da União Europeia. Agora, vejo isto na prática.

Fala-se muito da necessidade de "internacionalização" dos nossos jovens, futuros quadros a desempenhar um papel decisivo no sucesso ou insucesso da nossa posição na globalização. Parece-me ser evidente que essa internacionalização começa por ser europeização. Ela não se faz com discursatas políticas, com apelos à ideia de uma Europa unida que pouco diz a quem se limita em experiência real de vida a este rectângulo atlântico. O Erasmus é permitir alargar, no real, essa experiência de vida. É po risto, também, mas não vem agora ao caso desenvolver a ideia, que me bato pela generalização dos "postdoc" no estrangeiro.

Curiosamente, o meu filho e os seus amigos do engraçadíssimo "bando dos quatro" acabaram por não ter muito contacto com colegas suecos. Sabem muito da Suécia, mas pela experiência do dia a dia, coisas até bem divertidas de esperteza portuguesa em terras de gente fria. Grandes amizades, grandes conversas, troca de pontos de vista, foram com as dezenas de colegas "erásmicos" das mais variadas nacionalidades europeias. A língua de ensino, obrigatoriamente o inglês, pode afastar os estudantes suecos, porque os cursos são em paralelo e eles optam pelo curso em sueco. No entanto, garante o meu filho que o programa em inglês é tão bom ou melhor do que o programa em sueco. Eu não me importava nada que ele, agora quase regressado, tivesse todo o resto do seu curso em inglês.

No entanto, não há bela sem senão. O Erasmus, em Portugal (por exclusiva responsabilidade portuguesa, não culpo a CE), está longe de garantir um acesso largo e equitativo. Só há dias, quase no fim do semestre, é que me chamaram para assinar o contrato, necessário para o pagamento da bolsa e, mesmo assim, parece que só daqui a um mês ou dois. Felizmente, tenho uma situação económica que me permitiu sustentar a sua estadia, mas quantas famílias podem dizer o mesmo? Também o truque vulgar de dividir por duas cada bolsa, provavelmente com a boa intenção de abranger mais alunos. Não é verdade. Acaba por ser um factor de exclusão. No caso da Suécia de vida cara, por exemplo, a bolsa por inteiro mal cobre as despesas mínimas essenciais. Meia bolsa significa a exclusão de quem não tem pais que possam cobrir a outra metade.

 
19 de janeiro de 2007

 

E agora?

Ainda não acabei a série de notas sobre o relatório da OCDE, mas já se justifica perguntar: e agora? Parece que, finalmente, vão sair duas leis, a da governação e a do ECDU. É pouco. O edifício legislativo da educação superior tem, pelo menos, seis pilares fundamentais: estratégia e organização do sistema; regulação do "mercado" (ofertas de cursos e vagas, sistema de acesso); autonomia e governação; financiamento; garantia da qualidade; carreiras. Faltam-nos, portanto, mais cinco propostas de bases legislativas (em linguagem substantiva, sem especificações jurídicas, para que não somos competentes). Vou desafiar os meus amigos co-autores do artigo aqui publicado, Bases para uma lei da autonomia, para a escrita das outras propostas.

Esta é uma aproximação pragmática, a de leis específicas, segundo a nossa tradição das últimas décadas. No entanto, preferia uma solução à espanhola, a de uma única lei orgânica da educação superior. A vantagem é que, tal como quando se revê qualquer grande código, civil, penal, IRS, tem de se ter a preocupação de se manter a coerência global.

Mas para quê esse trabalho meu e de outros? Exercício académico gratuito? Não, embora tudo dependa dos apoios granjeados. Sabem o que é uma petição? Acima de um certo número de assinaturas, obriga o parlamento a discuti-la. E edição em livro ou como e-book? E justificando audiências com os grupos parlamentares? E pedindo um debate ao Conselho Nacional de Educação? E um bombardeio de mails ao CRUP e ao CCSISP exigindo a discussão? E uma "petition online"? E quotização para anúncio de página inteira nos principais jornais? Etc., etc.

Era bem bonito que a reforma da educação superior aparecesse como resultado, principalmente, da comunidade académica. Vai ser uma das minhas prioridades de intervenção, nos próximos tempos.

 

A entrevista de António Rendas

O meu estimado colega António Rendas, com quem partilhei bem interessantes discussões na secção permanente do senado da UNL, é o novo reitor da sua universidade. Dá hoje ao Público uma entrevista sólida, bem pensada, a merecer leitura atenta. Também a merecer comentários, que ficarão aqui, muito em breve. No entanto, não resisto à transcrição imediata de uma coisa bem sibilina.
P: Que avaliação faz da actuação do ministro Mariano Gago?

R: Foi um excelente ministro da Ciência, tem uma folha de serviço muito boa e estou preparado para dar o benefício da dúvida no que diz respeito ao ensino superior.
Eu já esgotei o benefício da dúvida.

 
17 de janeiro de 2007

 

As exigências de Sócrates

Uma notícia da última edição do Sol, da autoria de Andreia Félix Coelho, inclui duas coisas interessantes. Em primeiro lugar, a possibilidade de algumas universidades virem a ter o estatuto de entidades públicas empresariais. Não vou escrever sobre isto, porque, por coincidência, já antes do relatório da OCDE estava a escrever um artigo sobre a natureza institucional das instituições de educação superior. Publicá-lo-ei em breve, parece que agora sob pressão do calendário politico.

A outra parte da notícia diz que Sócrates teve uma reunião com Mariano Gago em que lhe exigiu (termo forte para relações com um ministro, mas merecido) que, até Março, estejam prontos os projectos de lei da autonomia e de ECDU. Eu não tenho vindo a escrever uns lamirés sobre a necessidade de Sócrates olhar para a inacção do MCTES? Parece que tinha razão. E, a confirmar-se, a exigência de um novo ECDU dá um certo gozo, porque se sabe que é coisa de que MG estava a fugir como o diabo da cruz.

 
15 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (XI)

A regulação e a proposta para o futuro Conselho Coordenador do Ensino Superior

No que diz respeito à regulação do sistema e da oferta de cursos, sabidamente um problema que acabou por assumir dimensões negativas inaceitáveis, o relatório da OCDE atribui grande importância ao futuro Conselho Coordenador do Ensino Superior (CCES), previsto na recente lei orgânica do MCTES (Decreto-Lei nº 214/2006 de 27 de Outubro), mas ainda não regulamentado. As propostas do CCES abrangeriam, essencialmente: os objectivos estratégicos e as prioridades; o quadro geral de planeamento, com monitorização e ajustamento anuais; e a lista geral de objectivos a nortear a negociação dos contratos programáticos. Anote-se, negativamente, a omissão de qualquer proposta operacional de regulação do aspecto que se tem manifestado como o mais problemático, a da oferta de cursos.

No artigo que já referi, propõe-se uma solução radicalmente diferente, a de uma entidade reguladora independente. É óbvio que há uma margem de sobreposição com a proposta da OCDE, a da orientação política geral, que não atribuímos a essa entidade independente. Mas isto é o que me parece ser a vantagem da nossa proposta, a de separar a orientação política, evidentemente da competência do governo, e a regulação propriamente dita, no plano operacional, coisa que o relatório da OCDE esquece. Mas do mal o menos e considero que já não seria nada mau que a proposta da OCDE vingasse. Não acredito.

Porquê? Por pequenas nuances difíceis de explicar. Começo pela noção de base, muito diferente, de um órgão consultivo à portuguesa e de um "policy committee" à internacional, subjacente à proposta da OCDE. O CCES está claramente referido na lei como órgão consultivo e nada parece haver no relatório da OCDE que contrarie essa natureza, mas, repito, a filosofia e as responsabilidades são diferentes. Anote-se, por exemplo, que o relatório parece elevar o nível da decisão política final, atribuindo ao conselho de ministros a capacidade de decisão sobre as propostas do CCES. Fica para o ministro, no entanto, um poder decisivo, o de celebrar com as instituições os contratos programáticos, elemento chave (a meu ver muito bem) de todo o modelo proposto pela OCDE.

O CCES teria como presidente o primeiro ministro (muito significativo!), o MCTES como vice-presidente, e seria composto por 5 representantes de outros ministérios com interesse na educação superior, 5 membros provenientes do mundo social, cultural e económico e por outros 5 membros académicos, mas com exclusão de reitores e de vice-reitores (muito bem!). Tanto os "civis" como os académicos seriam nomeados pelo primeiro ministro por processo de candidatura pública e selecção em que interviriam as entidades representativas dos "stakeholders". Esta composição proposta pela OCDE é um grande avanço em relação ao Conselho Consultivo do Ensino Superior, criado pela Lei 1/2003 e agora extinto, composto "corporativamente" apenas por representantes dos diversos subsectores do sistema de educação superior.

O governo terá coragem para aceitar esta proposta da OCDE, contra o lóbi? Duvido, que mais não seja atendendo por analogia ao recente discurso do primeiro ministro. Apesar de a proposta da OCDE ficar longe, como disse, do modelo de regulação que defendo, já ficaria bastante satisfeito com a sua concretização.

 
12 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (X)

Ainda a governação: uma no cravo e outra na ferradura

Concluo hoje o comentário ao capítulo sobre governação do relatório da OCDE. Tenho de voltar a ele porque posso ter induzido em erro os meus leitores, quando escrevi que as propostas da OCDE eram extremadas, o que poderia causar reacções injustificadas ao essencial, o modelo proposto. Para ser justo, isto deve ser moderado pela leitura de um parágrafo importante, quase contraditório. Vale a pena transcrevê-lo.
3.22 However, the autonomy and self-regulation which should be a feature of this legislation should not be applied to all institutions with immediate effect; on the contrary it must be introduced gradually and in response to application from individual institutions. It is suggested that such application be made to the Conselho Coordenador do Ensino Superior (CCES). The Review Team proposes that CCES should assess all such applications and make appropriate recommendations to the Ministry as to whether or not the new legal provisions should apply to the applicant institution. It is also recommended that the CCES would form panels of experts to assess each application and that the membership of such panels should contain a clear majority of international members. The details should be a matter for the expert panel to recommend but it is suggested that the degree to which the other recommendations in this report have been implemented successfully by the applicant HEI should figure strongly in the assessment of institutional readiness to make the transition. These freedoms will find expression in a new relationship with government. But the central matter is that, with excellent leadership and governance, the creativity of faculty and staff will be released; new initiatives will emerge and the ultimate result will be a responsive, excellent and engaged institution. Clearly such a prospect should be regarded as of immense benefit throughout Portugal.
Como disse, tudo isto me parece contraditório, talvez piano tocado a quatro mãos sem muitos ensaios. Por um lado, recomendações exigentes, noutro parágrafo, como, por exemplo, presidência externa do órgão de governo, maioria de membros externos, reitor nomeado por "search and select". A seguir, este parágrafo que permite que tudo fique na mesma.

No artigo que já citei e de que sou co-autor, parece-me haver uma atitude mais realista: imposição de regras mínimas, imediatas e gerais, mas com "perfil baixo"; prémio às propostas que forem significativamente para além do mínimo obrigatório. No entanto, para quem conhece a nossa realidade, só há prémio sensível se se traduzir por vantagens financeiras, o que a OCDE parece ignorar. Estranhamente, porque baseia muitas das suas propostas numa filosofia de contratualização. Porque não ponderar significativamente nessa contratualização a qualidade da governação, como propusemos? "A new relationship with government", o que é que isto quer dizer? E com um governo que já mostrou o que entende por modelo desejável de governação? "Clearly such a prospect should be regarded as of immense benefit throughout Portugal." Muito gosto eu de declarações redondas e pomposas! Já agora, fico a pensar que esta frase foi escrita por alguém que conhece Chico Buarque, traduzindo quase à letra "ainda vai ser um imenso Portugal" (espero que os leitores percebam a ironia deste escriba que é grande fã de CBH).

Última nota para coisa que me parece totalmente inaceitável, a sugestão de que a avaliação e aprovação dos estatutos institucionais passem por uma comissão de peritos com maioria de membros estrangeiros. As universidades e os institutos politécnicos são organismos do Estado. A organização interna do Estado e dos seus organismos é matéria indiscutível de soberania. Ou também ainda ouvirei propor a intervenção de peritos estrangeiros na elaboração das nossas leis? Gostaria de ter visto o ministro a reagir a esta desfaçatez. Tê-lo-ia absolvido um pouco do pecado de submissão de todo este exercício OCDE.

 
10 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (IX)

Ainda a governação e a reacção do governo

Continuo sobre a governação, seguindo o relatório da OCDE, mas desta vez orientando mais a escrita para a proposta do governo. Como já escrevi, foi, até agora, a única proposta da OCDE que teve reflexo numa proposta objectiva do governo, e logo um reflexo negativo. Afinal, para que serviu tão caro e pomposo exercício, continuarei sempre a perguntar?

No apontamento anterior, coloquei reservas em relação ao acerto, no concreto, da proposta da OCDE. É certo que são apenas caracterizações indicativas mas, indo demasiadamente longe em relação à cultura universitária vigente, fortalecem o adversário, alienando indecisos. No entanto, insisto em que a proposta vai ao encontro de um larguíssimo entendimento internacional de que também partilho. A OCDE baseia a sua proposta na separação, embora articulada, de dois domínios de governação, o estratégico e o académico.

Definir o plano de desenvolvimento e a estratégia, encontrar missões diferenciadoras e promotoras da competitividade, procurar activamente financiamentos externos, inserir a instituição na sociedade, usar a distribuição orçamental como estímulo à qualidade, definir, com o mesmo objectivo, a política de recursos humanos, etc., não é nada de específico e único de uma universidade, são tarefas que competem a um órgão de governação estratégica em qualquer instituição. As qualificações requeridas não são de tipo profissional. Para se ser membro de um órgão destes na EDP não é preciso ser-se engenheiro electrotécnico, nem ser-se piloto no governo da TAP.

Onde as universidades e politécnicos são especiais é na área académica (pedagógica e científica). A decisão de criar um novo curso tem significado estratégico, mas não pode ser o órgão de governo a organizar o plano curricular (desculpem a lapalissada, mas é bom que nos entendamos). Por outro lado, a participação da comunidade é especialmente importante na vida académica. Não ligo nada a que isto seja um valor de "gestão democrática", porque democracia é na vida política, não na gestão do supermercado, e porque democracia não se confunde com resquícios profundos de uma herança de mentalidade corporativa. A participação é essencial mas apenas porque com ela melhora muito a qualidade institucional. Obviamente, ao contrário do anterior, este órgão deve ser composto por critérios de qualidade profissional, conjugados com os de representatividade da comunidade.

É claro que isto está escrito com grande reducionismo. Há inúmeras possibilidades de concretização deste modelo. Por outro lado, é essencial entendê-lo como modelo de governação partilhada, com inúmeras formas possíveis de cooperação entre os dois órgãos. Já tenho escrito muito sobre isto.

É isto, no essencial, o que propõe a OCDE: um órgão de governo, com presidência e maioria de membros externos; um órgão académico, representativo, incluindo estudantes. E foi a isto, e só a isto, que o governo se viu obrigado a reagir, no discurso do primeiro ministro na AR (os reitores elogiaram!). A proposta governamental, que funde numa só as duas governações distintas, é um desconchavo, mistura alhos com bugalhos, mete no mesmo saco o gato e o rato. Quem a terá imaginado?

Vou transcrevê-la novamente, sem comentários, mas com itálicos meus. Creio que seria um insulto à inteligência dos meus leitores, depois do que escrevi acima, mostrar-lhes a incompatibilidade radical entre a proposta do governo e a concepção da OCDE (e etc., etc., etc.).
"O [JVC: repare-se, no singular!] órgão máximo de cada instituição, que deve assegurar a sua direcção estratégica – Senado, Conselho Geral ou qualquer outra designação que venha a ser escolhida – deve ser colegial e eleito e composto pela comunidade académica, mas esse órgão dever ter uma maioria de professores e deve estar largamente aberto à sociedade, através da presença obrigatória de personalidades externas à instituição com experiência relevante para a sua actividade.

Competirá a este órgão de topo a escolha do dirigente máximo de cada instituição – Reitor de universidade ou Presidente de politécnico –, decorrendo essa escolha após processo de selecção, aberto à candidatura de professores de outras instituições. Competirá, ainda, a este órgão de topo apreciar o desempenho dos responsáveis designados e os resultados alcançados."

 
8 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (VIII)

A governação

Passo ao capítulo 3, sobre a governação. É óbvio que é dos mais sensíveis e motivou logo uma posição contrária do governo. Ainda por cima, uma posição que confunde coisas elementares, como a diferença entre a governação política/estratégica e a governação académica. Talvez não seja facilmente perceptível, fica para próximo apontamento a desmontagem da proposta.

O diagnóstico da OCDE não adianta muito, quantos já o temos escrito. "Main issues are (...) external stakeholder participation, the appointment of the rector, issues concerning institutional leadership, the size and composition of governing boards, the effectiveness and transparency of decision making, the governance and management of institutions i.e. the relationship between the governing body and the rector, the balance which needs to be struck between accountability of institutions to governments and their autonomy in financial and academic matters and the support of institutions for the achievement of national goals." " The law is framed in such a way as to ensure that all universities have identical governing structures."

Ah, o que seria de nós sem a OCDE!

Depois, os erros que eles detectaram, e de que ainda não me tinha apercebido. "The degree of autonomy for public universities is considerably in excess of the public polytechnics; (…) The lack of external membership on the University's Assembly and the rather modest representation on the Polytechnic Assembly;(…) the leadership of institutions is weak; (…) The election rather than the selection of the Rector, (…) the excessive value which is placed on collegiality within the individual institutions."

A seguir, vêm as propostas e aqui é que a coisa se complica. Qualquer sistema de reforma se defronta com uma cultura adversa estabelecida. Regra essencial em política, o óptimo é o inimigo do bom. Em resumo, as propostas da OCDE são o meu óptimo.

- Um conselho de governo de não mais do que 15 membros, com maioria de "stakeholders" externos;
- Nomeação do reitor por este conselho, de acordo com o processo moderno de "search and select";
- Um órgão de governação acadêmica, com representação sensata dos estudantes (segundo a OCDE, 3 em 25);
- Uma comissão executiva, presidida pelo reitor, para a gestão corrente,

Nada a opor, em princípio, mas, repito, o óptimo é o inimigo do bom. Fica-me de tudo isto a impressão de alguma insensatez e irrealismo dos peritos da OCDE. Provavelmente, também se aplicará se eles forem propor isto nos seus paises.

Das duas uma. Ou isto é imposto como regra geral a todas as universidades e é o caos, de incompreensão, de furos estatutários, de viciações na prática; ou é deixado à discrição das universidades e nenhuma adopta este modelo. O trio de amigos que escreveu recentemente um artigo sobre este assunto partilha uma opinião firme. Hoje, o que vale, é o prémio financeiro. O segredo estará em saber como recompensar a boa governação.

 
5 de janeiro de 2007

 

A entrevista do ministro (II)

Continuando. Sobre as propinas, diz o ministro que "o Governo não aumentará o valor máximo que pode ser pedido (excepto acertos de inflação)". Isto tem merecido títulos de jornal, apesar de ser rematada tolice. A culpa também é dos jornalistas e da sua ignorância. Mas esta ignorância também é consequência da sua educação universitária.

É claro que o governo não aumentará as propinas porque não pode, salvo se conseguir uma revisão constitucional.

A CRP proibe agravamentos dos custos de educação. Quando Marçal Grilo decidiu, e bem, aumentar as propinas, o Tribunal Constitucional apoiou-o, na estrita medida em que já havia propinas no salazarismo e de que era admissível, constitucionalmente, a sua actualização em função da inflação, portanto do seu valor em custos reais, não só nominais.

Portanto, o que é que, agora, o ministro está a dizer de novo, quando refere "acertos de inflação"? Apesar da minha tolerância para pequenos erros, com algum benefício de dúvida sobre a honestidade intelectual, há limites para além dos quais me sinto ofendido.

 

A entrevista do ministro

Há afirmações aparentemente sólidas que escondem aspectos duvidosos. É, por exemplo, o que diz Mariano Gago, na sua recente entrevista ao DN:
"P: As instituições vão ser obrigadas a acompanhar a inserção profissional dos seus licenciados. Será uma regra bem aceite?
R: Algumas universidades já estão a seguir e a divulgar de forma sistemática o percurso dos seus licenciados. Mas isso não chega. É preciso fazê-lo de forma organizada e com transparência. E há uma maneira indirecta de o ajudar a fazer: dando informação pública da totalidade dos dados que se encontram nos centros de emprego, relativamente a licenciados no desemprego, com informação sobre os cursos a que correspondem os perfis das pessoas desempregadas.
P: Identificando cursos e instituições com piores desempenhos?
R: Sim. (...) Dar informação sobre as áreas e cursos com maiores dificuldades de empregabilidade é útil para as instituições e para os estudantes."
Se eu discordar disto, os meus leitores habituais devem ficar com muito má impressão. No entanto, isto faz-me lembrar uma caixa chinesa. Em relação à caixa exterior, nada a dizer. É urgente um observatório da entrada na vida activa, é urgente saber-se o que são formações rejeitadas pelo mercado de trabalho, é importante saber-se como cada instituição consegue vencer relativamente estes condicionalismos do mercado de trabalho. Mas passemos à caixinha chinesa que está dentro.

Porque é que há desemprego de licenciados e o que é que isto significa? Nesta propsta do ministro como se vai distinguir o emprego directamente ligado ao curso e o correspondente valor de emprego variado facultado por condições de empregabilidade geral do curso? Tem sido muito pouco discutida entre nós a noção da flexibilidade da empregabilidade, que é coisa muito diferente da formação para o emprego. É provavelmente o ponto-chave do sucesso do sistema americano de educação superior, em relação ao mercado de trabalho. Não posso alargar-me, alerto para um artigo meu sobre este assunto. Se eu for a um supermercado e encontrar um peixe que só serve para fritar, não o compro, se naquele dia estiver com o gosto virado para peixe cozido. Mas compro um que diga no rótulo que serve para fritar e para cozer. Por outro lado, está verdadeiramente empregado, para os efeitos agora tidos em conta, om licenciado que trabalha como caixa de supermercado?

Outra questão: será que todo o desemprego de licenciados é negativo? Do ponto de vista da solidariedade social imediata, claro que sim, mas, infelizmente, a história tem outra racionalidade. Por mais que nos custe, é fundamental uma certa margem de desemprego, como antecipação ao futuro (a menos que a flexibilidade de que falei seja muito elevada). A cinética da economia é mais acelerada do que a da formação de quadros. Quando se impõe uma necessidade económica, ela não pode esperar pelos dez anos de preparação dos quadros, eles têm de estar logo disponíveis. Isto quer dizer que, entretanto, estiveram "desperdiçados", eventualmente no desemprego. Para quem quer ser pensador, colocam-se muitas vezes problemas destes, como conciliar generosidade com realismo quase cínico?

Dentro desta segunda caixa chinesa ainda há outra, a das instituições. Como é que cada uma entra nesta caixa da oferta-desemprego? O presidente do CRUP, congratulando-se com esta entrevista do ministro, disse que as instituições devem assumir essa transparência. Eu bem gostava de saber se o presidente do CRUP diria o mesmo, nessa qualidade, se, em vez de ser o reitor da UTL, fosse o reitor da Universidade do Algarve, como foi o seu antecessor. Afinal, ao contrário do que tenho escrito, a utilização do carimbo CRUP tem muito que se lhe diga.

Não posso aqui desenvolver muito esta questão, mas lembro que, no mercado português da educação superior, pesa enormemente o factor de proximidade geográfica. Propinas, diferenças de custos entre o ensino público e privado, prestígio institucional, têm menos peso do que é o custo de ter um filho em quarto alugado em cidade distante.

Portanto, as taxas de desemprego de uma determinada instituição têm muito pouco a ver com a qualidade dos seus cursos, mas sim com a realidade regional. Os seus licenciados desempregados não o são por terem sido formados por esa universidade ms por serem dessa região. Estou muito interessado em saber qual é a taxa de sucesso profissional de um determinado curso, por comparação entre as três universidades de Lisboa, mas pouco me diz essa comparação com a UTAD ou com a U. Évora.

E ainda vai mais uma caixinha chinesa: o que significam essas comparações? Que dados tem o mercado de trabalho para valorizar X em relação a Y, na mesma área geográfica e no mesmo curso? Economia da Nova ou do ISEG? Informática do IST ou da FCT/UNL? Direito da UL ou da UNL? Tenho receio de que muitos universitários percam energias em exercícios púberes de masturbação intelectual.

Atenção, no fim. É vulgar deixarmo-nos ir por exercícios de discussão que nos fazem esquecer o ponto de partida. Neste caso, era a necessidade de um observatório do emprego dos universitários. Estou de acordo. Será uma vez por outra, JMG.

 
4 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (VII)

A autonomia e a natureza institucional (ou as fundações e o emprego privado)

Entre o capítulo 2 e o 3, há que comentar a questão da autonomia e da natureza institucional. Afirma o relatório que o grau de autonomia é muito reduzido, por o regime legal ser altamente uniformizador. Quem é que ainda não disse isto? O relatório defende um grau muito maior de verdadeira autonomia, mas no sentido de ela ser um meio de afirmação da identidade competitiva de cada instituição, num quadro de competição não só pelos melhores professores e estudantes e por financiamentos externos mas também em relação ao próprio Estado, por via dos contratos programáticos, a que me referi no último apontamento. Muito bem, parece-me merecer apoio de muitos e muitos que têm defendido isto, mas o recente discurso do primeiro ministro passa isto por alto.

Em relação à autonomia, foi manchete em todos os jornais. "OCDE propõe que as universidades passem a ser fundações". Não é verdade e é bom exemplo da nossa actual cultura de "sound bites". O relatório é sensatamente transparente, enfatizando o objectivo da autonomia mas não concretizando nenhuma proposta jurídica para a qual os peritos não tinham preparação:
" 2.47 The panel heard a number of submissions that stressed the importance of finding a new legal status for universities and polytechnics which could (progressively) provide them with more autonomy, opportunities for institutional development and human resource flexibility. Different alternatives such as a Foundation or a new type of public entity were suggested. This is a complex and technical Portuguese juridical question that is beyond the competence of the review panel. Nevertheless, the panel is convinced that resolving this question is of paramount importance so that Portugal's public higher education institutions can be granted a significant increase in institutional autonomy. This is an essential prerequisite for achieving a diverse and responsive system, and for creating the conditions in which a system of negotiated institutional contracts can be introduced. (…)"
Para além dos organismos vulgares da administração, dispomos hoje, com alguma simplificação, de outras figuras para entidades dependentes do financiamento e do controlo do Estado, em grau variável: institutos públicos, entidades públicas empresariais, fundações, empresas públicas. Note-se que os nomes podem ser ilusórios; por exemplo, a FCT não é nenhuma fundação, é um simples IP. Fica ainda o vasto campo da administração autónoma, como a regional ou a autárquica, a que é regida por leis próprias, não subordinadas a um enquadramento genérico.

Pessoalmente, como leigo jurídico, considero que a administração autónoma é a melhor hipótese para as IES. A sua natureza é estabelecida em lei reforçada, que pode ir buscar, à medida, o que de melhor e mais adequado podem ter os estatutos genéricos de outro tipo de instituições, por exemplo a grande autonomia estatutária das fundações e a grande autonomia financeira e a flexibilidade de gestão das entidades públicas empresariais.

A única vantagem que vejo num estatuto de Fundação, à Serralves ou Centro Cultural de Belém, é a de possibilitarem o aliciante, para os mecenas, de um papel estatutário. No entanto, é disto que discordo, que a governação das IES fique dependente de participações externas institucionais. Defendo vigorosamente a participação externa, mas sempre a nível da qualificação individual, nunca por representação de interesses.

A consequência prática essencial desta questão é a do estatuto do pessoal. Se dependentes de uma fundação, não são funcionários públicos. Neste ponto, a opinião da OCDE, no sentido da privatização do vinculo laboral, é clara (3.12, 3.21).

Não me pronuncio, por incompetência jurídica, sobre a maior ou menor dificuldade de converter, a curto prazo, milhares de funcionários públicos em trabalhadores de entidades privadas. Falo é do que conheço, como ex-dirigente. Nunca dei porque o ECDU ficasse muito limitado por regras gerais da legislação do funcionalismo público, a não ser em coisas menores (regime de férias, faltas e dispensas, situações de doença, matérias disciplinares, etc.). O ECDU já consagra diferenças essenciais em relação à generalidade das carreiras, até em termos de regimes (tempo integral, parcial ou em dedicação exclusiva), diferenciações salariais e possíveis prémios de desempenho. Não é no plano jurídico que está o problema, é no facto de o ECDU ser hoje obsoleto e não contribuir em nada para a promoção do mérito e para o combate à endogamia. Parece é que o MCTES foge de um novo ECDU como o diabo da cruz.

Desejo fazer-me entender bem. Fiz toda a minha vida no regime geral de trabalho, o emprego privado. Por isto, nada tenho, em princípio, contra que ele seja alargado aos universitários, mas também não vejo nisto nada de fundamentalmente exigível. É questão de custos-benefícios, para cuja análise não tenho condições de experiência jurídica. Fundamental, para mim, e ao encontro do relatório da OCDE, é que, seja qual for o estatuto institucional, ele permita a cada IES uma política e gestão de pessoal perfeitamente adequada à sua política de promoção da qualidade.

Nota – Os apontamentos desta série estão a ultrapassar em dimensão o que é razoável num blogue. Penso que é desculpável. Ao passar a outros assuntos, retomarei o estilo habitual.

 

Chamada de atenção

Para a crónica de hoje de João Caraça, na secção de economia do DN, "A OCDE no sapatinho das universidades".

Esta chamada de atenção devia ser recorrente para as crónicas regulares de JC. São exemplo do melhor que temos de tradução na realidade e usos portugueses de uma coisa de que tanto gosto, o estilo inglês de escrita e discussão. Uma ideia aparentemente simples, uma exposição elegante e inteligentemente singela, meia dúzia de parágrafos, às vezes a parecer conversa de gin tónico, depois um resultado a fazer pensar.

Mas isto também está nos genes, mesmo quando não se teve, infelizmente, a influência real e directa do pai. Leiam Bento de Jesus Caraça e verão o que é um exemplo, no Portugal de há sessenta anos, dessa limpidez de raciocínio e de exposição. E não me consta que BJC tenha passado por Oxbridge, devia ter era, de menino, o brilho e os cambiantes da luz reflectida nos seus mármores de Vila Viçosa.

 
3 de janeiro de 2007

 

Uma vela ao padroeiro

Hoje é notícia a entrevista do ministro ao DN. Há coisas que me merecem reparos, a começar pelo que mais tem sido ouvido hoje, com o presidente do CRUP a fazer de caixa de ressonância, os cursos e instituições responsáveis pelo desemprego. Merece escrita reflectida, fica para depois dos comentários ao relatório da OCDE, bem mais importante. Mas não posso deixar de referir o último parágrafo da peça do DN:
"Mariano Gago garante que está em curso uma reforma que passa pela especialização das instituições, pelas parcerias internacionais, pela alteração radical dos modelos de funcionamento e de gestão das universidades e por uma maior responsabilização em relação ao sucesso escolar dos alunos. A começar já este ano."
Já acendi uma vela pequenina ao meu santo padroeiro. Podia ter sido maior se tivesse lido também financiamento, contratualização, carreiras. O mal é que isto de padroeiros às vezes funciona mal. Muitas vezes teve o meu bisavô Viveiros de virar contra a parede, de castigo, o seu homónimo S. António, quando ele não cumpria promessas e contratos devotos.

 
2 de janeiro de 2007

 

O relatório da OCDE (VI)

Estratégia e organização do sistema de educação superior

Até agora, tenho comentado o relatório da OCDE mais na perspectiva política. Acabo sempre por cair na critica ao ministro. Já chega, nem ele aproveita as minha criticas nem elas chegam a quem lhe pode puxar as orelhas. Chegou agora a altura de cumprir a promessa, comentar os aspectos mais significativos do relatório e começando por salientar que é um relatório muito bem elaborado, escrito com inteligência e rigor e denotando bom conhecimento do que mais se vai discutindo por este mundo fora sobre a educação superior. Note-se que isto não contradiz o que escrevi, nada no relatório era inesperado para mim, mas dizer que fossem tolices é coisa muito diferente, até contraditória.

Hoje, em nota forçosamente curta, vou ficar-me pela segundo capítulo, que trata da organização e estratégia do sistema. Em próximos comentários, abordarei a governação, a regulação e o financiamento. Salto o primeiro capítulo, necessário num relatório destes, mas apenas descritivo. Pelos vistos, tenho para vários apontamentos, mas é provável que os venha a compilar num artigo de fundo, espero que em colaboração.

Antes do mais, quero reproduzir uma coisa lapidar deste relatório, porque subjacente a muito do que depois se discute. "A major factor behind these perverse consequences is that the level of public information on course content, programme goals, quality, career opportunities and graduate employment is inadequate or unavailable". [*, * , *]

A meu ver, ressaltam neste capítulo quatro questões essenciais:

1. Deve manter-se o sistema binário, universidades e politécnicos? Sem qualquer surpresa para mim e muitos outros, a resposta é inequivocamente positiva [*] e não deve ter agradado nada aos defensores da igualização thatcheriana, que, como sempre disse, me parecem motivados por coisas menores de auto-estima. O relatório dá grande ênfase à necessidade de clarificação da natureza e missão de cada subsistema. Não é nenhuma novidade, parece lapalissada, mas justifica-se que se diga, mais uma e mais muitas vezes, porque é o que temos. A caracterização que o relatório faz é banal, mas talvez venha a ser mais respeitada do que a que tantas vezes cá tem sido feita, até por professores do politécnico [*].

No entanto, fico com a impressão de que o painel foi mais sensível à óbvia "deriva académica" do politécnico. Gostaria de ter lido igual critica à "deriva tecnológica da universidade", para mim igualmente grave.

2. A que subsistema deve ser promovido preferencialmente o acesso? A resposta também não me surpreendeu, mas neste aspecto acho que não devo ter grande companhia. Ao politécnico! Já escrevi, como agora os peritos da OCDE: "Precisamos de massificar a educação superior, precisamos de desmassificar a universidade. Alargar o acesso à educação superior não significa obrigatoriamente escancarar as portas das universidades. (...) O nosso principal défice é provavelmente nos cursos de especialização tecnológica (CET) mas, infelizmente, não há dados. A seguir, o politécnico, depois o secundário. O melhor índice (dentro do mau) é o da educação universitária. Isto significa que, para nos aproximarmos da situação média, no que respeita ao ensino pós-secundário, temos de investir primeiro no ensino sem grau (CET), depois no politécnico e, finalmente, no superior." [*]

3. É necessária ainda maior diversidade? Também esperava: sim, principalmente uma grande expansão da "educação terciária pré-grau" [*]. Voltando a lembrar a triste experiência thatcheriana de transformação dos excelentes nicos em universidades medíocres, rapidamente se corrigiu o erro, com o desenvolvimento dos "colleges for further education". Como se sabe, nos EUA, a adequação do nível de qualificação às rápidas evoluções da economia não se fazem nas universidades, com muito maior inércia, mas nos "colleges", com os seus cursos práticos de dois anos.

É verdade que temos os CET. Mas quantos, com que distribuição, em que áreas, com que ligação à vida económica e social, com que financiamento? E a que nível institucional? Esta última questão é importante, porque a lei é vaga e permite CET conferidos por escolas secundárias até a universidades. O espaço não me permite maior discussão, mas arrisco-me a ser mal interpretado propondo escolas especiais, em muitos casos por reconversão de actuais escolas politécnicas, sem prejuízo de, flexivelmente, também poder haver CET nos politécnicos e até em universidades, designadamente as periféricas.

4. Justifica-se alguma cirurgia institucional no sistema? Confesso a minha surpresa com o relatório da OCDE, neste aspecto. Esperava uma receita bruta, de recomendações de extinções e fusões, à burocrata (e não seria isto que o MCTES desejava, para caçar com o cão alheio?). Dou por uma atitude de grande sensatez. Espere-se para se ver, não é por mais uns anos que um sistema que tem mostrado tal resiliência vai colapsar. Mais facilmente colapsará por se retirar abruptamente uma peça e tudo entrar em desequilíbrio. O relatório admite, a curto prazo, a possibilidade de "down-sizing", mas não de extinções.

Aplaudo duas recomendações: que as decisões se baseiem na apreciação do cumprimento ou não de contratos programáticos [*]; e que sejam sempre consideradas numa perspectiva regional (também merecia [*], já escrevi sobre as "academias" regionais, mas não consigo encontrar o texto).

O relatório insiste e insiste, muito bem, nesses "perfomance contracts". Volta a falar deles a propósito da governação e do financiamento. Quem me lê adivinha o prazer com que li este texto. Só não dizem, coisa prática, que talvez isto só seja possível se o CRUP passar a ser um simples e respeitável clube de amigos. Até lóbi, concedo, porque não?

Devia discutir sobre este capítulo a questão da regulação e da defesa que é feita de um mecanismo baseado no conselho coordenador do ensino superior. Como disse acima, merece comentário específico, é dos temas em que estou em desacordo. A OCDE propõe a regulação por um organismo afinal governamental, eu por uma entidade independente. Concordo, porque compatível com ambos os modelos, com a ênfase que o relatório dá ao quadro único de planeamento. Discutirei depois.

Não podia terminar sem ir ver o que disse Sócrates sobre isto na AR. Aos costumes disse quase nada, apesar de tudo isto ser fundamental para o que se segue. Ficou-se pela declaração genérica da necessidade de reforçar o sistema binário, mas sem nenhuma proposta de intervenção. No entanto, não o culpo, tenho-o como homem e político corajoso. De onde lhe veio então esta gaguez politica?

Nota – Talvez tenham reparado em que este apontamento tem alguns [*]. Desculpem, é um exercício narcísico, "links", e apenas alguns exemplos, a coisas escritas muito antes do relatório da OCDE.

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