23 de março de 2007

 

O decreto da avaliação (IX)

Avaliação comparativa, benchmarking e quadros de qualificações

Um do aspectos mais interessantes da actual avaliação, pela Europa fora, é o que podíamos chamar avaliação comparativa, essencialmente para elaboração de "benchmarks" e, daí, códigos de boas práticas. O projecto de decreto desconhece isto por completo, bem como, aliás, tudo o que o ministro tem dito também o omite.

Discuti com alguma profundidade o "benchmarking" num artigo no meu sítio. Relembro aqui só o essencial.
"Benchmarking é uma técnica já com dez anos para optimização das empresas e instituições num mercado competitivo. Essencialmente, é um processo comparativo de identificação, compreensão e adaptação de boas práticas de outras empresas consideradas como as melhores, com a finalidade de introduzir melhorias na organização e tentar levá-la ao nível daquelas concorrentes.


O essencial do benchmarking é a definição de descritores, indicadores e processos de boas práticas. Neste sentido, para além das empresas, pode aplicar-se com grande sucesso à melhoria dos "produtos" das instituições de ensino superior, à sua organização e gestão e às suas práticas. Por princípio, o benchmarking é um processo comparativo em relação às melhores instituições, descrevendo para a instituição em causa as suas "performances" em relação aos competidores e aos seus padrões de qualidade e adaptando os melhores padrões da concorrência a si própria.
Mas, no caso do ensino superior, as boas práticas das melhores instituições já estão estabelecidas internacionalmente como padrões de qualidade, são conhecidas de muitos professores e podem ser usados como referenciais comparativos, sem o processo de investigação dos concorrentes. 

Uma das razões do benchmarking, em que o aperfeiçoamento da empresa é feito por referência aos exemplos das empresas bem sucedidas, é que, nas actuais exigências de competitividade, o aperfeiçoamento da empresa ultrapassa geralmente os seus quadros, presos aos seus próprios paradigmas.
Pelo contrário, como se disse, "o benchmarking implica olhar para fora, para examinar como é que os outros conseguem os seus níveis de desempenho e compreender os processos que eles usam. Neste sentido, o benchmarking ajuda a explicar o que está por detrás da excelência. Quando as lições extraídas de um exercício de benchmarking são aplicadas devidamente, facilitam a melhoria do desempenho em funções críticas de uma organização ou em áreas chave do ambiente empresarial" (O'Reagain e Keegan, "Benchmark Explained", in "Benchmarking in Europe - Working Together to Build Competitiveness", UE, 2000).

"
Note-se como é relevante, no caso da educação superior e da sua cultura institucional, o que referi acima: "o aperfeiçoamento da empresa ultrapassa geralmente os seus quadros, presos aos seus próprios paradigmas."

Chamo também a atenção para um alerta importante que escrevi então.
"O benchmarking é um processo que tendencialmente, pode levar à uniformização, embora essa uniformização seja evolutiva. Permite inovações, mas estas inovações, num processo de benchmarking contínuo, são rapidamente assimiladas por todo o sistema. Que lugar, portanto, para a diversidade, um valor essencial no ensino superior? (...) A competição faz-se cada vez mais pela qualidade (incluindo a empregabilidade) e esta tem padrões que tendem a ser consensuais e que ressaltam dos exercícios de benchmarking. Creio que, todavia, há lugar para a compatibilização de um consenso em torno de padrões de qualidade com a diversificação, tanto institucional como programática. Uma consequência inevitável é que haverá sempre instituições que só são capazes de atingir parcialmente os padrões mais elevados de qualidade e isto gera diferenças. É verdade que estas diferenças serão entre melhores e piores instituições, o que não é a diversidade que se pretende, embora isto seja inelutável. Mas pode haver padrões que respeitem a diversidade das instituições: padrões para instituições tipicamente de ensino e padrões para universidades de ciência; padrões para instituições de ensino académico e de ensino vocacional; padrões de governação e gestão centrados na eficiência mas permitindo soluções concretas adaptadas a cada circunstância nacional e cultural. Além disso, os referenciais resultantes do benchmarking são metas e, no caso dos cursos, indicam, entre outras coisas, os objectivos educacionais mas não programas concretos ou currículos comuns. A margem de escolha e de diversidade programática que fica para as instituições é enorme."
Como tudo isto é um enorme desafio a um sistema de avaliação com uma visão um poucochinho mais larga do que a AAAGQES! E, leitores familiarizados com o processo de Bolonha, tudo isto não vos evoca logo outra coisa? Uma das prioridades depois de Bergen, a definição de quadros de referência de qualificações. Não se estranhe a mistura. O melhor exercício nacional neste domínio, a meu ver, o inglês, foi da responsabilidade da sua agência de garantia de qualidade, a QAA (estupidez inglesa, porcaria de sigla, comparada com AAAGQES!): "The framework for higher education qualifications", concretizado nos "Honours degree subject benchmark statements" (e também a nível de "master"). Isto é tanto mais importante para a avaliação quanto a sua meta futura, hoje ainda talvez um pouco utópica, será a da avaliação por resultados ("outcomes"): não interessa quanto produto, mas que produto.

Muita coisa teria sido diferente em Portugal na "adequação" a Bolonha se tivéssemos esperado um pouco e começado pelos quadros de qualificações. Até já havia algum trabalho feito, é certo que bastante desigual e algum inaproveitável, da responsabilidade das comissões disciplinares constituídas pela ministra Graça Carvalho. Nem tudo o que os nossos antecessores adversários políticos fizeram deve ir automaticamente para o lixo. É questão de simples instinto de defesa, para não nos vir a acontecer o mesmo.

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